É claro, Cármen Lúcia, que saúde é mercadoria

18/07/2018

 “Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro”, afirmou a ministra Cármen Lúcia, presidente do STF, ao suspender a resolução da ANS sobre coparticipação em novos contratos de planos de saúde. 

 
Isso que dá ministros do STF se tornarem celebridades da TV. Começam a falar banalidades fofas e frases de efeito só para fortalecer a aura de santidade e ganharem elogios na internet. 
 
É claro que saúde é mercadoria —e Cármen Lúcia sabe muito bem disso. Quando precisa de um médico, ela não recorre a uma ONG de médicos que trabalham de graça, a um hospital público ou a um curandeiro sem fins lucrativos, mas a gente que oferece saúde em troca de um bom cascalho. 
 
Sem a ambição de médicos e negociantes, de grandes laboratórios e empresas listados na Bolsa, Cármen Lúcia não conseguiria tratar nem sequer uma apendicite.
 
Três entre milhares de exemplos: 
 
- A ultrassonografia médica, que entre outras coisas salva milhares de bebês ao detectar malformações de forma rápida e barata, surgiu nos anos 1980 durante uma corrida tecnológica travada por grandes empresas de tecnologia. A Acuson saiu na frente —em 2000, foi vendida por 700 milhões de dólares para a Siemens, que hoje divide o mercado com GE e Philips.  
 
- Até 1989, quem tivesse problemas de estômago precisava fazer como Nelson Rodrigues: “alimentar a úlcera” com mingau durante a madrugada. Tudo isso se resolveu com a invenção do omeprazol pelo laboratório Astra AB, hoje parte do AstraZeneca, o maior conglomerado farmacêutico do mundo. 
 
- Em favelas, periferias e ao redor de terminais de ônibus, clínicas populares atraem pobres cansados da fila e do mau atendimento do SUS. Cobram desde 80 reais por consultas sem fila e com direito a retorno. 
É verdade que a saúde é um bem essencial à dignidade —por isso mesmo deve ser tratada como uma mercadoria. Não convém confiar uma atividade tão fundamental somente à bondade e ao altruísmo.
 
A possibilidade de lucrar resolvendo problemas alheios costuma alinhar o egoísmo ao altruísmo. Como um professor escocês de filosofia moral nos ensinou no século 18, o lucro é um incentivo a mais para que as pessoas se dediquem a solucionar problemas de desconhecidos.
 
É interessante imaginar um mundo em que saúde não fosse mercadoria. Nada de equipamentos e remédios inovadores, já que, se “dignidade não é lucro”, não seria possível lucrar nessa área. O número de médicos despencaria —do que adiantaria estudar tantos anos para ganhar o mesmo que um cobrador de ônibus? 
 
A saúde no Brasil precisa ser tratada mais como mercadoria e menos como um direito sagrado. Está submersa num lodaçal de regulações que criam reservas de mercado, barreiras de entrada a concorrentes e incentivos perversos a pacientes, hospitais e planos de saúde.
 
O país exige a presença de médicos até para um simples exame de vista. Conselhos de medicina têm muitas semelhanças com cartéis: fixam preços e proíbem anúncios, promoções e descontos. E o famigerado controle de preços ocorre sem controvérsia nos planos de saúde —como no tabelamento dos tempos do Sarney, o resultado é o desabastecimento de planos para pessoa física. 
 
Serviços de saúde são regidos pelo lucro e pela lei da oferta e procura —?e sempre será assim, por mais bonitas que sejam as frases de efeito da presidente da Suprema Corte.
 
Leandro Narloch
Jornalista, autor de “Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil”. É mestre em filosofia pela Universidade de Londres.

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