Raio-x da saúde suplementar no Brasil, em opinião no Conjur

19/07/2024

Enquanto a saúde pública é entendida como o conjunto de ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo poder público, constituindo, assim, o Sistema Único de Saúde (SUS), a saúde suplementar é compreendida como o conjunto de ações e serviços privados prestados por meio das operadoras de saúde, também chamadas de planos de saúde. Dessa forma, trata-se de prestação de serviço de saúde médico-hospitalar exclusivamente na esfera privada.
 
 
Na década de 1960, no Brasil, algumas empresas de setores econômicos privados iniciaram a contratação de planos de assistência à saúde para seus empregados, dando origem às atividades do setor de saúde suplementar no país [1].
 
 
Da década de 1960 até o final da década de 1980, o referido setor encontrava-se destituído de qualquer regulamentação pública, sendo a Constituição de 1988 o marco da edição de normativas com finalidade regulatória, ante a necessidade de disciplinamento da relação instituída entre consumidores, operadoras de planos de saúde, médicos e poder público. Assim, a Carta de 88 promoveu verdadeira reestruturação das funções estatais, a partir da qual o Estado passou a interferir nas atividades econômicas por meio de agências reguladoras [2].
 
 
Outro marco relevante na história do setor privado de saúde foi a edição do Código de Defesa do Consumidor, em 1990. Nesse cenário, foi criado o Programa Estadual de Defesa do Consumidor (Procon), que passou a receber um intenso volume de queixas de consumidores em relação aos planos de saúde, dando início a crescentes conflitos entre a sociedade e as empresas mantenedoras da saúde privada. Questões relacionadas ao reajuste das mensalidades, abusividade de cláusulas contratuais, negativa de concessão de procedimentos médico-hospitalares e concessão de procedimentos não contratados acabaram por configurar grande litigiosidade, despertando o interesse regulatório estatal.
 
 
Depois de um período de disciplinamento incipiente, a Lei 9.961/2000 criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) com a finalidade precípua de regulamentação do setor privado de saúde no Brasil. Ante a necessidade de conformação, a ANS passou a aplicar o marco regulatório da saúde suplementar, por meio de suas resoluções e da Lei 9.656/1998, denominada lei dos planos privados de assistência à saúde, que trouxe normatização sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, submetendo suas disposições às pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade e, simultaneamente, das disposições do CDC, bem como das resoluções emitidas pela ANS.
 
 
Por seu turno, a Constituição garantiu o direito ao exercício privado da prestação de serviços na área da saúde, além de ter definido a saúde como um bem público e direito social fundamental, afirmando que o Estado tem um papel relevante em estabelecer regras para regulamentar o setor.
 
 
Nesse cenário, a saúde suplementar é de fundamental importância para o sistema de saúde no Brasil, uma vez que fornece serviços e procedimentos médicos para relevante parcela da sociedade, descomprimindo as altas demandas do SUS.
 
 
Raio-X
A FGV Justiça [3] desenvolveu duas pesquisas sobre a saúde suplementar no Brasil, a fim de apresentar a realidade do setor privado de saúde para a sociedade e para as instituições, por meio de um verdadeiro raio-X da prestação de serviços médicos e hospitalares, com foco na relação instituída entre usuários e operadoras de planos de saúde.
 
 
Na pesquisa intitulada “Raio-X da Saúde Suplementar no Brasil” a proposta foi analisar a opinião de usuários e não usuários de planos de saúde acerca do presente setor econômico, a partir de um diagnóstico e acompanhamento de sua imagem.
 
 
Para tanto, foi realizada uma amostra nacional de 2.000 entrevistados entre a população adulta brasileira acima de 18 anos, de todas as regiões do país, e subamostra de usuários de planos de saúde, no período compreendido entre 16 e 22 de maio de 2024, sendo composta pela compilação de dados quantitativos, coletados por meio de questionário elaborado pelo Ipespe em conjunto com a FGV Justiça, constituído por perguntas acerca da realidade da saúde suplementar no Brasil, sem perder de vista a comparação com a saúde pública.
 
 
Nesse sentido, os resultados da pesquisa, a partir do perfil da amostra, foram divididos em: avaliação do setor; importância do setor de saúde suplementar; mercado de planos de saúde no Brasil; judicialização da saúde no setor privado; e conhecimento de entidades ligadas ao setor da saúde.
 
 
Satisfação com o plano de saúde e judicialização
Um dos dados mais relevantes coletados na pesquisa relaciona-se ao grau de satisfação com o plano de saúde, sendo aferida nota de 7,7 como a média de satisfação dos usuários com os seus planos de saúde. Por outro lado, chamou a atenção o percentual de 55% de brasileiros que declararam confiar pouco ou não confiar no setor de saúde suplementar, contra 42% que confiam ou confiam muito.
 
 
Outro dado relevante trata do fenômeno da judicialização da saúde. Dentre os entrevistados, 78% declararam desconhecer o termo “judicialização da saúde”, o que significa que um quinto dos brasileiros nunca ouviu tal expressão. Apesar da expressão ser desconhecida, 6% dos entrevistados já acionaram a justiça contra seus planos de saúde e 26% conhecem alguém que o fez. Entre os motivos que levaram alguém a acionar a Justiça contra o plano de saúde, “a negativa de cobertura assistencial” aparece isolada em primeiro lugar, com 65%. Quanto ao que foi negado na cobertura assistencial, “cirurgia” é o item mais citado (51%), seguido de longe por “medicamentos” (12%), além de outros com menos de 10% das menções.
 
 
A temática da judicialização da saúde foi o objeto central da segunda pesquisa intitulada “Raio-X da Judicialização da Saúde Suplementar no Superior Tribunal de Justiça”. A proposta dessa pesquisa foi analisar o perfil das decisões judiciais, em sede de Recurso Especial no STJ, nas demandas concernentes à saúde, a partir do paradigma: direito fundamental social à saúde versus relação jurídica do usuário com as operadoras de planos de saúde.
 
 
Decisões
Foram analisados 41 recursos especiais, no período de janeiro de 2021 até maio de 2024, com recorte específico nos seguintes elementos das demandas: a unidade da federação que deu origem ao recurso especial; o número do processo e a data da publicação de seu julgamento; as partes componentes da relação jurídica processual (recorrente, recorrido e interessados); o órgão que julgou o recurso; o relator ou a relatora; o objeto do recurso especial; os temas tratados nos recursos; o teor da decisão e se esta foi favorável, parcialmente favorável ou desfavorável ao usuário/beneficiário dos planos de saúde; e as fundamentações adotadas pelo tribunal para julgar de maneira favorável, parcialmente favorável ou desfavorável ao usuário/beneficiário.
 
 
Dentre os resultados da pesquisa, é possível destacar que, em 87% das decisões em sede de recurso especial e de recurso especial repetitivo, houve decisão favorável ou parcialmente favorável ao usuário/beneficiário, o que demonstra uma tendência do STJ, a partir do elemento jurídico, a evidenciar o direito fundamental à saúde, amplificando, por exemplo, o rol de procedimentos e serviços da ANS, atualmente com amparo na Lei 14.454/2022, que normatizou o caráter exemplificativo condicionado do referido rol.
 
 
Evento
Com o objetivo de promover a discussão acerca da realidade da saúde suplementar no Brasil, bem como de apresentar os dados completos das referidas pesquisas, a FGV Justiça, por meio do Fórum Permanente de Saúde, realizará relevante evento no dia 29 de julho, presidido pelo coordenador acadêmico da FGV e ministro do STJ, Antonio Saldanha Palheiro, e contará com quatro painéis, assim divididos: painel 1 – Imagem e credibilidade da saúde privada no Brasil; painel 2 – Governança e equilíbrio financeiro na saúde suplementar; painel 3 – Formação médica no Brasil; e painel 4 – Entraves, insegurança e fraudes.
 
 
O primeiro painel discutirá a imagem e a credibilidade da saúde privada no Brasil, com a ajuda de dados coletados nas pesquisas realizadas pela FGV Justiça em interação com os conhecimentos compartilhados pelos convidados do evento. Nesse contexto, a forma como é percebida a saúde suplementar no Brasil revela os desafios que o setor privado enfrenta, em decorrência do grau de expectativa existente ao seu redor, fazendo com que o presente painel tenha como proposta mostrar qual é a imagem transpassada pelo setor, relacionando-a com o índice de credibilidade que ele detém. Os palestrantes irão trazer tal percepção, a partir de vivências, experiências e estudos, para que os referidos marcadores fiquem mais claros para todos que participarão do evento.
 
 
O segundo painel focará na gestão das empresas operadoras de planos de saúde, fomentando o diálogo acerca da governança e do equilíbrio financeiro da saúde suplementar, com esteio nos mecanismos de compliance e de integridade. Assim, a contribuição dos palestrantes sobre governança e equilíbrio financeiro da saúde suplementar será no sentido de apresentar ao público os mecanismos de gestão voltados para a sustentabilidade financeira das operadoras de saúde, a partir do aprofundamento de conhecimentos sobre os instrumentos utilizados para que haja solvabilidade dessas empresas.
 
 
O terceiro painel debaterá a influência da formação médica no Brasil e no exterior para o setor de saúde suplementar. Com isso, a contribuição dos palestrantes sobre a formação médica no Brasil restará evidenciada por meio de palestras focadas na qualificação do ensino de medicina. A partir de boas práticas na área, será possível conhecer a realidade dos acadêmicos das universidades de medicina, bem como do chamamento público exigido pela Lei dos Mais Médicos em âmbito nacional. O foco, no presente painel, será no tocante às experiências compartilhadas, a fim de consubstanciar uma visão mais precisa no que concerne à edificação de novos profissionais de medicina.
 
 
No que concerne às novas perspectivas do setor, o quarto painel abordará os entraves, a insegurança e as fraudes que, em grande parte das vezes, deságua na judicialização da saúde, evidenciando a implicação dos Tribunais nas presentes demandas, bem como o impacto de suas decisões para subsidiar propostas legislativas, regulamentares, além da consecução de políticas públicas, com destaque para as de solução consensual de disputas.
 
 
Diante do exposto, formadores de opinião, autoridades e especialistas em saúde estarão presentes para palestrar e debater sobre a saúde suplementar no Brasil, de maneira a analisar e buscar soluções para o mercado de saúde privada.
 
 
Autores:
Antonio Saldanha Palheiro
é ministro do STJ e coordenador acadêmico do Fórum Permanente da Saúde da FGV Justiça.
 
Thiago Serrano Pinheiro de Souza
é doutor e mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá (Unesa), bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da FGV Justiça.
 
Notas:
[1] SANTOS, Fausto Pereira dos. Saúde suplementar – impactos e desafios da regulação, disponível em file:///C:/Users/Vaio/Downloads/admin,+02_saude_suplementar.pdf. Acesso em: 25.06.24.
 
[2] Op. cit.
 
[3] https://ciapj.fgv.br
 
 
 
Fonte: Conjur

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