Negociações coletivas na crise do coronavírus

Raimundo Simão de Melo é consultor jurídico, advogado, procurador regional do Trabalho aposentado, doutor e mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP e professor titular do Centro Universitário UDF e da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (SP), além de membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho. Autor de livros jurídicos, entre outros, Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador e Ações acidentárias na Justiça do Trabalho. 22/04/2020

 Como é público e notório, por conta do chamado coronavírus a humanidade está vivenciando grave crise sanitária, econômica e social, com consequências nas atividades econômicas e nos empregos, o que exige de todos grande exercício de solidariedade, cidadania e respeito aos direitos humanos. Para tanto, o melhor e mais efetivo remédio é o diálogo social maduro e responsável na busca de soluções conjuntas para o bem comum e, particularmente, para amenizar os males decorrentes dessa pandemia, que está atingindo a todos, especialmente castigando mais os pobres e vulneráveis, incluindo os trabalhadores de baixa renda.

 
Nesse diálogo não se pode esquecer de que a humanidade está à prova e a vida humana sob risco. As economias mundiais estão em queda e, em consequência disso, o capital global vai ter que rever suas formas de ação, talvez com outro olhar para as questões sociais e para os valores humanitários.
 
A pandemia do novo coronavírus espalha-se rapidamente por todo o Brasil e exige isolamento social como medida mais importante no momento, único meio de desacelerar a transmissão do vírus e seu contágio galopante. Por conta do risco à saúde e à sobrevivência das pessoas é necessário esse isolamento temporário da maior parte das pessoas. Por isso, grande parte dos trabalhadores deve ficar em casa, mas outra parte, como os trabalhadores da saúde, da segurança, dos meios de transportes etc., precisa trabalhar para salvar a vida dos outros.
 
Nas relações de trabalho os impactos da crise provocada pelo coronavírus serão consideráveis. E essa crise está só começando.
 
O papel das empresas e dos sindicatos está à prova como nunca antes. Se capital e trabalho não são inimigos, uma vez que um depende do outro para atingir seus objetivos, ambos devem se dar as mãos para defender o inimigo oculto: a pandemia do coronavírus. Aos sindicatos de trabalhadores cabe, neste momento, buscar assegurar condições adequadas de trabalho para os heróis que estão arriscando suas vidas pelos outros, mostrando para os tomadores de serviços que esses trabalhadores precisam receber os devidos cuidados, porque os riscos a que estão expostos não são de qualquer natureza; são riscos graves e iminentes. Vejam, por exemplo, os trabalhadores da saúde, que no mundo inteiro estão adoecendo e muitos morrendo por falta de EPIs adequados nos seus dia a dia de trabalho. É verdade que até esses EPIs podem faltar, como está acontecendo, mas as providências, por isso, devem ser urgentes e criativas, passando necessariamente pelo diálogo franco entre empregados e empregadores, cabendo a estes, mais do que nunca, informar corretamente aos trabalhadores sobre os riscos a que estes estão expostos.
 
Já para aqueles trabalhadores que precisam ficar em isolamento é necessário redobrado diálogo entre patrões e trabalhadores, estes através dos seus sindicatos, buscando preservar empregos, manter salários e formas de subsistência, tendo-se consciência de que a árdua tarefa de combate à pandemia é dever de todos, com sacrifícios de todos, considerando que a atual crise agravará mais ainda o quadro de exclusão social no Brasil e no mundo.
 
Não interessa a ninguém, nem às empresas, o agravamento do desemprego e da exclusão social, porque se os trabalhadores não recebem salários ou qualquer forma de renda eles não compram e se não há compras ou estas diminuem, a atividade produtiva diminui e perderá. Vejam o que está acontecendo em relação aos combustíveis: porque as pessoas estão comprando menos os preços estão baixando, o que vai acontecer com outros produtos em seguida. Enquanto alguns produtos poderão faltar, outros sobrarão e aí entra a lei da oferta e da procura.
 
Por isso, neste grave momento de crise os sindicatos devem colocar à prova sua capacidade de negociar com as empresas, buscando soluções conjuntas para possíveis casos de redução de salários, suspensão dos contratos de trabalho e outras alternativas cabíveis, cumprindo seu papel legal e social, como estabelece a Constituição Federal no art. 8º, incisos III e VI, diante da sua obrigatória participação nas negociações coletivas de trabalho. É certo que parte do setor patronal e o governo não pensam assim. Querem mesmo é o afastamento da atividade sindical. É o que se vê das normativas que este último vem baixando. Alguns dizem que os sindicatos poderão atrapalhar a rapidez que os casos exigem e/ou aproveitar para fazer outras reivindicações. Todavia, não me parece ser a melhor solução querer afastar os legítimos representantes dos trabalhadores do diálogo social, exatamente no momento em que ele é mais necessário ainda. Apesar da crise e da calamidade pública, ainda existe um Estado Democrático de Direito no Brasil, pelo que não se pode simplesmente querer negar e anular o papel das instituições sociais, que representam a sociedade atingida pela crise. Ao contrário, os representantes da sociedade devem ser chamados para, juntamente com os setores patronais e governamentais, no caso das relações de trabalho, buscarem o diálogo tripartite, rápido, é claro. Se os sindicatos não agirem por inércia ou por qualquer outra razão, se criarem empecilhos descabidos, aí, sim, o problema será deles, diante da sociedade e das categorias que representam.
 
Lembre-se que no art. 7º, inciso VI, a Constituição Federal estabelece que a redução de salário somente pode ocorrer em situações excepcionais, mas sempre por meio de negociação coletiva, portanto, com a participação sindical. Não excepciona nenhuma outra hipótese, nem mesmo situação de força maior e do fato do príncipe, porque se trata de uma garantia constitucional fundamental para os trabalhadores.
 
Na forma da Constituição Federal do Brasil as garantia constitucionais somente poderão ser suspensas, de forma temporária e emergencial, em situações excepcionais e restritas de Estado de Sítio, constando do seu art. 138 que o decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessárias à sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, o que, à evidência e em respeito ao Estado Democrático de Direito, não é o caso presente.
 
Usar o fundamento do direito à vida para afastar garantias constitucionais, por conta da calamidade pública decretada por conta do coronavírus não parece ser o melhor caminho. É, sobretudo, muito perigoso, porque outras iniciativas poderão surgir e com isso se desmorona o Estado Democrático de Direito.
 
Vejam, a exemplo, a recente iniciativa governamental, por meio da apresentação de um projeto de lei ao Congresso Nacional, no qual se propõe a criação de um "comitê especial", composto por órgãos de Justiça e controle, para solucionar de forma rápida casos relacionados ao coronavírus. O chamado Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e Controle concentraria em único colegiado todos os questionamentos judiciais e extrajudiciais que envolvam a pandemia. O direito à vida tem posição destacada na ordem constitucional brasileira, mas com isso não se pode afastar garantias constitucionais da separação dos poderes e da independência de instituições como o Ministério Público e as Defensorias Públicas para permitir que um órgão excepcional julgue certos conflitos, como forma de ultrapassar obstáculos naturais das instâncias ordinárias. Isso representa, como têm sido as reações a esse projeto, “ameaça de devastação constitucional".
 
Mutatis mutandis é o que ocorre com o discurso de negação da garantia constitucional à atuação sindical na crise do coronavírus.
 
Não se pode negar, e isso é incontroverso, que o estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo n. 6/2020 exige urgência de ações governamentais, das empresas e da atuação dos sindicatos, com procedimentos simplificados para se garantir a eficácia das medidas de interesse público. Na própria MP n. 936 constam regras para facilitar os trâmites das negociações coletivas. Assim, diz o art. 17 que durante o estado de calamidade pública (II) poderão ser utilizados meios eletrônicos para atendimento dos requisitos formais previstos na CLT, inclusive para convocação, deliberação, decisão, formalização e publicidade de convenção ou de acordo coletivo de trabalho e que (III) os prazos previstos na CLT ficam reduzidos pela metade.
 
Portanto, a despeito das divergências motivadas pela MP n. 936, que restringiu o papel negocial dos sindicatos durante a crise do coronavírus, e da decisão liminar do E. STF na ADI n. 6.363, buscando, num difícil exercício de equilíbrio, não afastar os efeitos da norma governamental, mas, por outro lado, não anular por completo a atuação sindical, parece que a melhor e mais segura forma de negociação na crise do coronavírus é com a participação sindical. Com isso se evitará eventuais arguições de nulidade de ajustes entre empregados e empregadores, pelo não chamamento dos sindicatos, e eventuais passivos trabalhistas.

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