Reforma trabalhista tem que incluir e não excluir, afirma presidenta do TRT-SP

11/10/2022

 Não somos jabuticaba, avisa a desembargadora Beatriz de Lima Pereira, eleita em agosto e empossada nesta semana na presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2), que abrange a Grande São Paulo e a Baixada Santista. De 35 presidentes da maior Corte trabalhista do país, ela é a sexta mulher. “Jabuticaba” é expressão usada por alguns críticos, querendo afirmar que só o Brasil tem Justiça do Trabalho. Balela, diz a magistrada, para em seguida afirmar que esse ramo de Judiciário está presente em vários países.

Independentemente disso, e da posição ideológica de cada um, a Justiça do Trabalho desempenha papel importante e não pode ser vista como “entrave” para a economia, afirma Beatriz Pereira, formada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e na magistratura desde 1986. Desde então, ela testemunhou avanços democráticos, como a Constituição, e ameaças de retrocesso. Retrocessos que ela identifica, inclusive, na Lei 13.467, da “reforma” da legislação trabalhista, em vigor desde 2017.

Se por um lado a quase octogenária CLT precisava (e precisa) de mudanças, por outro a lei implementada há cinco anos teve resultado oposto ao necessário. Por isso, precisa ser repensada, diz a presidenta do TRT: “Ao invés de reformar para excluir, vamos reformar para incluir”.

Não somos jabuticaba, avisa a desembargadora Beatriz de Lima Pereira, eleita em agosto e empossada nesta semana na presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2), que abrange a Grande São Paulo e a Baixada Santista. De 35 presidentes da maior Corte trabalhista do país, ela é a sexta mulher. “Jabuticaba” é expressão usada por alguns críticos, querendo afirmar que só o Brasil tem Justiça do Trabalho. Balela, diz a magistrada, para em seguida afirmar que esse ramo de Judiciário está presente em vários países.

Independentemente disso, e da posição ideológica de cada um, a Justiça do Trabalho desempenha papel importante e não pode ser vista como “entrave” para a economia, afirma Beatriz Pereira, formada pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e na magistratura desde 1986. Desde então, ela testemunhou avanços democráticos, como a Constituição, e ameaças de retrocesso. Retrocessos que ela identifica, inclusive, na Lei 13.467, da “reforma” da legislação trabalhista, em vigor desde 2017.

Se por um lado a quase octogenária CLT precisava (e precisa) de mudanças, por outro a lei implementada há cinco anos teve resultado oposto ao necessário. Por isso, precisa ser repensada, diz a presidenta do TRT: “Ao invés de reformar para excluir, vamos reformar para incluir”.

Confira a íntegra da entrevista

São tempos novos para a Justiça do Trabalho. Uma reforma trabalhista muito recente, de cinco anos, modalidades de trabalho que começaram a surgir, de aplicativos e outros, e tem um outro elemento, que é uma ofensiva conta a própria JT. Como o Judiciário, especificamente o tribunal, tem lidado com essas transformações que vão acontecendo tão rapidamente?

Eu ingressei na magistratura em 1986. Então, passei pela Constituinte, passei pela emenda que ampliou a nossa competência… Tivemos momentos exitosos, como o fim da representação classista (pela Emenda Constitucional 24, de 1999) e a ampliação da nossa competência. Mas depois disso eu diria que tempos difíceis começaram a caminhar em relação à Justiça do Trabalho. Há sempre um incômodo muito grande, como se a Justiça do Trabalho fosse um entrave aos empresários, existe um discurso que os trabalhadores sempre ganham. Existe também essa discussão que a nossa legislação é excessivamente protetiva, que traz muitos encargos aos empresários, então sempre há um movimento, vamos dizer assim, que não tem muita simpatia pela Justiça do Trabalho.

Há um discurso recorrente de que a legislação é “engessada”.

Penso que isso, na minha visão, é um entendimento equivocado. Lógico que a CLT precisa passar por modificações, mas não necessariamente as que elas sofreram em 2017. Creio que algumas alterações criaram, primeiro, entraves ao acesso à Justiça, o que eu acho gravíssimo. O princípio do processo do trabalho é a gratuidade, ou seja, você não tem que pagar nada para entrar com processo, ao contrário de outros segmentos da Justiça. Isso é importantíssimo, porque as pessoas que procuram a Justiça do Trabalho geralmente são os desempregados. Não tem como exigir que a pessoa tenha condições econômicas de ingressar com o processo.

Aí com a reforma trabalhista de 2017 veio a famosa questão da sucumbência dos honorários. Isso era um instituto do processo civil, que nunca se aplicou na Justiça do Trabalho. Quando a JT iniciou, como ela veio do meio administrativo, antes de integrar o Judiciário, daí a representação classista e também o chamado jus postulandi, a parte poderia vir sem advogado, reduzir a termo a reclamação e ela tramitava. Essas são características que vieram da nossa origem.

Houve retrocesso?

Algumas coisas precisaram ser corrigidas, a própria representação classista, houve uma série de deturpações, passaram a criar sindicatos para que tivessem juízes classistas, então essa deturpação e o próprio ingresso da Justiça do Trabalho no Poder Judiciário não justificava mais a existência de juízes leigos. Então, as coisas boas a gente tinha que aproveitar, que é a questão da gratuidade do acesso. E as questões que não eram compatíveis com a permanência no Poder Judiciário a gente conseguiu afastar. E a reforma trouxe a questão da sucumbência, que não poupou nem aqueles efetivamente pobres. Porque no modelo inicial da reforma trabalhista o beneficiário da Justiça do Trabalho pode ser condenado a pagar os honorários da parte contrária quando ele perde o processo.

Uma das justificativas para isso é que havia um abuso de pedidos, que havia um exagero. Agora, para mim isso não é justificativa. A gente não pode atribuir exclusivamente ao trabalhador essa profusão de pedidos. Há um advogado que é quem elabora uma petição. Esses ajustes tinham que ser feitos de outra maneira. Quem abusa de requerer aquilo que é indevido o Código de Processo Civil tem instrumentos para inibir essa atividade, que é a litigância de má-fé. Você não precisava criar um obstáculo, uma dificuldade, um temor. Na verdade, se criou um temor: olha, trabalhador, agora se você perder a ação você vai ter que pagar os honorários, as custas. Acho que isso foi um retrocesso. Para o trabalhador pobre, desempregado, que é a imensa maioria que vem à Justiça do Trabalho, não pode existir esse tipo de temor para inibir as demandas.

A lei trouxe mais problemas?

Outra questão que também é preocupante foi o estabelecimento do rol de direitos previstos na lei em que poderia passar a prevalecer o negociado sobre o legislado. Isso é importante. Uma sociedade se revela avançada quando consegue resolver os conflitos sem se valer do Poder Judiciário. É muito interessante que haja negociação coletiva, que as partes envolvidas conversem e cheguem num entendimento, podendo inclusive estabelecer direitos diversos em determinadas matérias. Aquilo que a gente chama de direito indisponível, em determinadas questões haja uma negociação.

Por outro lado a reforma trabalhista acabou com o imposto sindical. Eu nunca defendi a existência de contribuições compulsórias. A atividade sindical tem de ser estimulada e as pessoas devem participar e contribuir na medida em que o sindicato é representativo. Mas nós tínhamos um sistema vigente, e os sindicatos se viram privados dessa contribuição. Isso acabou criando dificuldades para muitos sindicatos.

Se o objetivo da lei era estimular a negociação coletiva, vocês enfraqueceu um dos participantes.

Enfraqueceu os sindicatos, que são os promotores, o sindicato de trabalhadores e o dos empresários. Tinha que ter havido uma transição para que houvesse uma organização dos sindicatos para buscar outras fontes de custeio. Porque o sindicato precisa ter condições de sobreviver, até para oferecer serviços aos associados, que é uma forma de estímulo. Então, é um paradoxo: você prestigiou, vamos dizer assim, a atividade coletiva dos sindicatos, mas por outro lado fragilizou esses sindicatos.

E essas novas modalidades no mundo do trabalho?

Essa é uma questão muito importante que a gente está enfrentando. Essas modalidades, para falar o que é mais conhecido, que é o transporte, através do Uber e das outras fornecedoras desse serviço, é o que se popularizou. Uma legião de pessoas que , por várias razões, umas até premidas pelo desemprego, estão se dedicando a essas atividades. E não é só motorizadas. A gente cansa de ver pelas ruas jovens e ate idosos, de bicicleta, fazendo serviços de entrega.

E o que está acontecendo? Esse novo modelo não se encaixa no modelo tradicional de vínculo de emprego, que tem como principal característica a subordinação. Nesse tipo de trabalho não estão presentes essas e outras características do mundo moderno, que a doutrina até usa a expressão de trabalho para subordinado.

A subordinação é sutil, vem por outros mecanismos. Esses trabalhadores estão sem nenhuma proteção. A maioria das decisões não reconhece o vínculo de emprego, porque existe aquela condição “ah, eu posso desligar o aplicativo e não trabalhar”. Mas, por outro lado, quem está se dedicando a esse trabalho tem que se dedicar muitas horas pra ter um ganho razoável, que justifique o trabalho. Então, é urgente, na minha opinião, se for falar em modificação da CLT, o que a gente precisa fazer é contemplar uma proteção para esses trabalhadores.

Hoje mesmo o TST (quinta 6) ia julgar dois casos relativos à Uber, um reconhecendo o vínculo de emprego e outro não reconhecendo. A Justiça do Trabalho precisa caminhar para uma jurisprudência em reação a isso?

Estou muito à vontade para falar sobre isso, porque fui a relatora da primeira decisão num tribunal do Brasil a reconhecer o vínculo de emprego no caso da uberização, de um motorista do Uber. A minha decisão foi reformada pelo Tribunal Superior do Trabalho. Em tese, isso nem deveria chegar ao TST, porque envolve matéria de fato. Nesse caso que eu julguei havia comprovação de um trabalho cotidiano. Havia toda uma comprovação de que houve um trabalho habitual, a contraprestação está caracterizada pelo ganho dele, ainda que seja indireto, mas isso é uma modalidade antiquíssima.

Esse caso que eu examinei havia habitualidade na prestação do serviço. Ele tinha liberdade para decidir o horário que ia trabalhar ou não, que aí você vai na caracterização da parassubordinação. Há uma flexibilização, mas isso não afasta necessariamente o vínculo de emprego.

“E o mais importante: ficou comprovado que ele foi desligado do aplicativo porque houve reclamação do cliente”

Então, o argumento que esses aplicativos usam, que eles não interferem na relação, só disponibilizam o aparato tecnológico para que haja prestação de serviço, cai por terra nesse sentido. Se o cliente reclamou, vou desligar o motorista? Então, o aplicativo é responsável pelo serviço.

Outra questão: há um seguro feito pelo aplicativo para o veículo. Existem todos esses elementos, que são elementos de fato, que permitiram que eu tivesse fundamento e tranquilidade para reconhecer o vínculo de emprego. Essas matérias de fato, em tese não deveriam ser examinadas pelo TST. Porque o recurso de revista tem que compreender, normalmente, matéria de direito.

Provavelmente, esses casos que estão chegado ao TST é uma discussão teórica se é possível que nessas condições de trabalho se encaixe o modelo do artigo 3º (da CLT), que define a figura do empregado. Seria bom se houvesse uma uniformização, mas não dá para ter ainda. É um assunto ainda palpitante, que demanda mais decisões, mais discussão. Para mim, o mais importante é a gente tentar incluir na legislação uma proteção para esses trabalhadores. Uma regulamentação e uma proteção, ainda que não seja absolutamente idêntica à proteção que tem, vamos dizer, o trabalhador comum, que se encaixa no artigo 3º.

Como o trabalhador doméstico, que ficou muito tempo sem proteção.

Ele tinha pouquíssimo direitos e depois veio o reconhecimento, praticamente a equiparação ao trabalhador urbano, é assim a expressão da CLT. São questões desafiadoras. Em relação a esse tema das novas modalidades, tem poucas disposições na CLT, como o que surgiu agora na pandemia, um número imenso de pessoas trabalhando em casa. Surgiram várias questões, porque trabalhando em casa você vai usar a energia elétrica, outras despesas, por outro não tem a despesa da refeição.

Essas questões precisam ser contempladas pela legislação. Quando não existe uma base legal, é muito difícil o juiz não pode criar direito. O ideal é que comece a ser pensado. Ao invés de reformar para excluir, vamos reformar para incluir. Vamos tirar da CLT as coisas obsoletas e vamos pensar nesse mundo novo, digital, fora daquele ambiente empresarial. Fomos empurrados pela pandemia, mas a gente vê essa questão do uso de espaço as empresas enxugando seus espaços de trabalho, porque há essa possibilidade de compartilhamento de trabalho em casa. O Poder Judiciário não pode responder sozinho por isso, porque não tem uma base legal. O ideal é que a gente caminhe para as alterações legislativas necessárias.

Ainda na Lei 13.467, modalidades como trabalho a tempo parcial ou intermitente ajudaram ou precarizaram mais o mercado de trabalho, já tão marcado pela informalidade?

Eu nem diria que esses temas acabaram resultando em tantas demandas. E não diria que isso resultou num número expressivo de discussões judiciais. Mas, do ponto de vista da legislação do trabalho, entendo que é preocupante. Porque você cria, vamos dizer assim, um trabalhador de segunda categoria. Acho que isso não é bom nem para o trabalhador, nem para a empresa. Ainda que tenhamos vários modalidades de prestação de serviço, é muito importante o pertencimento dos trabalhadores naquela unidade econômica.

A primeira declaração do empresário é: não tenho nada a ver com isso, a empresa é terceirizada. Ora, meu Deus, está dentro do empreendimento econômico, como ele não tem nada a ver com isso? Então, a terceirização em si já provocou essa separação. Numa mesma unidade de trabalho você tem categorias diferentes de pessoas, elas têm tratamentos diferentes. A própria remuneração já é diferenciada.

Hoje, a partir de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, é possível a terceirização da atividade-fim. Você pode ter no mesmo ambiente empresarial pessoas fazendo a mesma coisa e ganhando salários diferentes. Vejo isso como um prejuízo para o trabalho em si, não só para o trabalhador. Vejo isso como ruim para a própria empresa, você fica compartimentando atividades e pessoas. Eu sei que a perspectiva era atacar o desemprego, não tenho dados do ponto de vista da economia para dizer se isso aconteceu, mas pelos números gerais que a gente ouve – tudo bem, estamos vivendo uma crise econômica que não é só no Brasil – não tenho nenhum elemento para confirmar que essa pretensão de inclusão se concretizou.

E a questão da execução de dívidas, que sempre foi um problema?

Está agravado, com a crise se agravou (confira quadro acima, que inclui ações recebidas pelo TRT). Muitas empresas quebraram. A gente sabe que quem mais emprega no Brasil é o microempresário. Ele já é pequeno, ás vezes são empresas familiares, que contratam uma pessoa para colaborar naquele pequeno comércio. Fora isso, a gente tenha essa estímulo ao empreendedorismo, que é importante, não vou negar, mas isso envolve uma preparação, uma estratégia. O que aconteceu? Essas pessoas que se laçaram no mercado, ou pelo desemprego ou que achavam que poderiam ter um empreendimento bem sucedido, a pandemia foi mortal. Trabalhadores que nem receberam verbas rescisórias. Aí você se vê diante de um ex-empregador, que já está vivendo como assalariado e não tem condições de pagar essa dívida. A gente tem um número elevado de execuções, que é preocupante. O juiz do Trabalho em que ter um olhar sensível para isso.

É diferente você ter um processo diante de uma Volks uma Walmart, e uma reclamação trabalhista diante dessas pessoas, que na verdade sucumbiram junto com o empreendimento. Temos que encontrar caminhos para não criar outra situação grave do outro lado.

No seu discurso de posse, a sra. manifestou preocupação com a manutenção do Estado democrático de direito, e a questão do trabalho está inserida nisso. É uma preocupação grande com o momento do país?

Estamos vendo uma polarização muito grande, a gente sabe que tem um embate de ideias, tem um lado que vê a Justiça do Trabalho como entrave, que acha que os direitos representam entraves para que a nossa economia floresça, enfim… É preocupante, a gente não sabe qual vai ser o encaminhamento, se essas forças que têm esse pensamento se sagrarem vencedoras. A gente já tem ideia de como será o parlamento, sabe que vai ser mais simpático a essas ideias.

Sempre lembro quando houve aquela tentativa de fazer uma CPI do Poder Judiciário, que Antonio Carlos Magalhães estava vivo ainda, entre outras coisas ele defendia o fim da Justiça do Trabalho. De certa maneira, isso foi renovado recentemente, o deputado Ricardo Barros (parlamentar do PP-PR). Antes do desencadeamento do processo eleitoral, ele defendeu também. Isso nos preocupa como instituição e porque temos o entendimento de que isso bom para o nosso país. Essa história de que a Justiça do Trabalho é uma jabuticaba é uma balela. Temos justiça do trabalho em vários países cada um com formato talvez diferente, mas nós não somos jabuticaba de jeito nenhum.

A Justiça do Trabalho tem papel importantíssimo para resolver essas questões individuais e coletivas também. A mediação nos movimentos grevistas, nos ajustes coletivos. Tem papel importante, e isso não pode ser desconsiderado, independentemente da posição ideológica que as pessoas podem ter. E mais ainda: ter um Direito do Trabalho que seja de proteção ao trabalhador, porque o trabalho faz parte do postulado da dignidade humana. Torço muito para que as coisas caminhem com equilíbrio. Repito: algumas coisas merecem reforma, porque já estão ultrapassadas, mas muitas precisam ser revistas para incluir direitos e não excluir.

 


Fonte:  Vitor Nuzzi, da RBA - 10/10/2022

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