A relação entre os efeitos das queimadas e o aumento da temperatura global está se consolidando. A devastação das florestas é percebida no cômputo global das emissões e as consequências impressionam os próprios cientistas.
Segundo preprint do estudo que aponta o declínio do sumidouro de carbono terrestre em 2024, conduzido pelo climatologista Philippe Ciais, do Laboratório de Ciências do Clima e do Meio Ambiente (LSCE) da Universidade de Paris, as florestas e solos absorveram entre 1,5 bilhão e 2,6 bilhões de toneladas de CO2 em 2023, muito pouco quando comparados aos 9,5 bilhões de toneladas em 2022. Em parte, isso se deve à seca na Amazônia e incêndios no Canadá e na Sibéria.
Ciais não esconde a preocupação, mesmo antes de computar os dados das queimadas de 2024, que já apresenta devastação de 17 mil hectares só no Acre. Ele antecipa: "Se esse colapso ocorrer novamente nos próximos anos, corremos o risco de ver um rápido aumento de CO2 e mudanças climáticas além do que os modelos preveem".
Em abril de 2023 escrevi um artigo com o professor Luiz Marques, da Unicamp, apontando que os elementos que provocam o aquecimento global poderiam estar sendo subestimados.
Afirmávamos que, segundo vários autores, as florestas degradadas têm absorvido menos CO2 do que anteriormente. Elas se tornaram por vezes neutras ou mesmo fontes de CO2, dada sua menor produtividade primária líquida e sua maior mortalidade. Ou seja, havia elementos não contabilizados oficialmente nas emissões dos países.
Isso explicaria a existência de um aumento significativo e não previsto do aquecimento global. Portanto, as informações enviadas ao IPCC para a modelagem climática apresentavam números questionáveis.
Afirmávamos ainda que “um preceito básico da ciência é o de que só se pode conhecer, prever e, portanto, gerir o que se pode medir. Os países não estão notificando corretamente à ONU as mensurações de suas emissões líquidas antropogênicas”. E concluímos: “Não é de admirar, assim sendo, que o aquecimento global esteja ocorrendo agora a uma velocidade superior à prevista pelas projeções”.
A perda de retenção de carbono, temida por Philippe Ciais para 2024, já é perceptível no Brasil. A seca da Amazônia e as queimadas do Pantanal reiteram, cada vez mais, o colapso que se manifesta por “uma procissão de eventos extremos mortais que atingiram todos os continentes”, como afirma o Le Monde. “O ano de 2023 experimentou aumento acentuado na concentração de CO2 na atmosfera em relação a 2022 (+86%), um recorde desde que as observações começaram em 1958”.
Mesmo diante deste cenário, nem os vorazes petroestados, nem as gigantes empresas produtoras de petróleo e gás, nem o agronegócio predador sinalizam transformações significativas para a sustentabilidade. Os governos, preocupados em ampliar o PIB, só demonstram inação, enquanto os setores predadores aumentam o marketing de climate washing.
O rompimento da capacidade de suporte do planeta continua a crescer. As consequências surgem, diluídas em eventos extremos registrados em noticiários esparsos. A realidade demonstra que a possibilidade da humanidade de reagir ao caos fica mais e mais distante.
A incapacidade de reação, na história humana, está registrada em eventos incontroláveis, naturais ou não. “O navio começou a inundar com água entrando a uma taxa estimada de sete toneladas por segundo, quinze vezes mais rápido do que as bombas conseguiriam retirar”, afirma a perícia que visou elucidar as causas do rápido afundamento do Titanic em menos de 3 horas depois de sua colisão com o iceberg.
Assim é com o equilíbrio natural. A capacidade dos sumidouros de carbono mantém, ainda que de forma insuficiente, preciosa sustentação climática para que essa não dispare diante da contínua saturação atmosférica por gases efeito estufa. Absorvem quase metade das emissões humanas – com proporção de absorção de 25% para oceanos e 20% para a terra.
A diminuição da eficácia desses ecossistemas vitais para o equilíbrio climático faz grande diferença para as previsões do aquecimento global que orientam acordos internacionais para a redução das emissões de gases estufa. Permitem antever cenários orientadores e estabelecer políticas públicas para mitigação e adaptação aos efeitos das alterações climáticas.
Essas lacunas de dados nos fazem questionar qual é a real fragilidade do equilíbrio climático e nossa capacidade e eficiência em comunicar os riscos envolvidos.
O desafio, maior do que se previa, exigirá medidas eficazes para a transformação dos setores responsáveis pela degradação florestal, com destaque para o agronegócio predador.
A mais nobre das atividades econômicas, que provê alimentos para a sustentação da vida humana, não pode ceder espaço para a ambiciosa voracidade que tem contribuído para a criminosa devastação das florestas do Brasil.
Os discursos retóricos destes setores econômicos revelam uma estratégia antiambiental. O recente estudo “Os Novos Mercadores da Dúvida”, publicado pela Changing Markets Foundation, afirma: “Os gigantes das indústrias do setor pecuário usam estratégias para distrair, atrasar e inviabilizar ações significativas sobre as mudanças climáticas”. O estudo compara as atuais estratégias do setor a métodos já utilizados pela indústria do fumo e do petróleo.
A pecuária é responsável por 16,5% das emissões globais de gases de efeito estufa e 32% de todo o metano causado pela ação humana. Das 22 empresas transnacionais investigadas pela CMF, a maioria não tem iniciativas eficazes para mudar seu processo de produção e se concentram no crescimento de mercado que já possuem.
Segundo o estudo, o setor fomenta ao menos sete grupos internacionais que utilizam mídias sociais para influenciar jovens, usando TikTok, YouTube, Instagram e outros meios, na tentativa de convencer que os alimentos produzidos pelo setor são os mais “saudáveis”, enquanto sua produção continua a provocar fortes impactos ambientais globais.
Esses fatos demonstram a dificuldade de se obter respostas proativas e a colaboração dos setores econômicos mais responsáveis pela devastação climática, cuja reticência é, na verdade, uma tremenda deseconomia para a humanidade e para o próprio setor.
A sociobioeconomia, com o uso das florestas em pé, pode ser mais lucrativa do que as economias convencionais que contribuem para o desmatamento na Amazônia. Segundo afirma o climatologista Carlos Nobre, do INPE, “as pastagens requerem de 1 a 2 trabalhadores por 100 hectares e geram lucro de US$ 50 a US$ 100 por hectare ao ano. O cultivo da soja requer até 1 trabalhador por 100 hectares e tem um lucro de US$ 100 a US$ 300 por hectare ao ano. Por outro lado, a gestão de sistemas agroflorestais e a colheita de muitas dezenas de produtos florestais não-madeireiros requerem de 20 a 40 trabalhadores por 100 hectares e têm lucro de US$ 300 a US$ 700 por hectare por ano…”
Philippe Ciais não está otimista. Teme que os sumidouros terrestres continuem a diminuir no longo prazo, à medida que o aquecimento aumenta a frequência e a intensidade das ondas de calor, secas e incêndios, impactos agravados pelo desmatamento.
Por sua vez, Josep Canadell, do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC), afirma: "Os modelos climáticos não conseguem capturar essas dinâmicas extremas e as reações dos sumidouros de carbono terrestres. Portanto, é possível que vejamos um aumento nas emissões além das previsões, o que levaria a temperaturas mais altas no futuro”.
É preciso reverter o processo diminuindo emissões e revegetando o planeta. Considerando que as emissões atuais apontam para aumento médio de aproximadamente + 3ºC para o final do século, continuar a queimar florestas representa incinerar o futuro.
Fonte: Carlos Bocuhy / Carta Capital