Por Iago Filgueiras*
Se em algum momento as fake news se tornam motivo de piadas, na prática, elas são preocupantes.
No século 21, as fake news ganharam cada vez mais espaço no debate público, seja com a veiculação em massa de conteúdos em redes sociais ou com a geração de imagens com o uso de inteligência artificial.
Alienígenas resgatando pessoas, imigrantes devoradores de cachorros e vacinas capazes de alterar o DNA e controlar a população. Tudo isso, por mais absurdo que pareça, tem método e objetivo bem definido.
E o método é o que destaca as fake news contemporâneas em relação aos boatos e campanhas de difamação que ocorreram — aos montes — durante a história do Brasil.
Para João Cezar de Castro Rocha, professor titular de Teoria da Literatura na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), as fake news se encaixam como um dos pilares da guerra cultural em curso.
Longe de ser uma batalha no campo das artes ou do entretenimento, a disputa na atualidade é por sentidos. E, para convencer que o inimigo está em tudo e em todos, as fake news se alimentam de ressentimentos e buscam confirmar ideias irreais. Assim, te ensinam quem deve ser odiado, o que é verdade e o que é mentira.
Fake news na atualidade: clique aqui para confirmar uma crença
Talvez você se pergunte: mentiras e desinformação não surgiram com a internet, certo? Certíssimo, mas o desenvolvimento tecnológico proporcionou novas formas de compartilhamento e sofisticou os métodos. Agora, basta um clique para atingir milhões — sem barreiras geográficas, sem demora e, ainda, com a possibilidade de personalizar o público alvo.
No contexto atual, as fakes news operam em uma lógica de disseminação do caos — saber em quem ou no que confiar ficou cada vez mais difícil. Com toda a sofisticação da modernidade, esses discursos caem como uma luva quando as crenças e a realidade se chocam.
Afinal, a base real já não importa. Por exemplo: os professores não doutrinam as crianças para que transicionem de gênero, mas se eu creio que a família tradicional enfrenta uma ameaça iminente, o que vale são as fake news e como elas se encaixam na narrativa que eu me esforço para manter de pé.
O falso teste toxicológico e a taxação do Pix
Entre os casos de destaque da atualidade, o falso teste toxicológico usado por Pablo Marçal, então candidato à prefeitura de São Paulo em 2024, deixou ainda mais evidente a estratégia da extrema direita.
Ao candidato Guilherme Boulos, do PSOL, foi imputado um teste positivo para uso de cocaína. A estratégia ecoou, e muito. Se na justiça o ônus da prova — responsabilidade de provar um fato por parte de quem acusa — existe, na era das fake news, isso já não importa mais. Para desmentir o caso, Boulos teve que apresentar um laudo (esse sim, verdadeiro) que provava a farsa.
Já em 2025, as mudanças propostas pelo governo federal, que incluíam a monitoração de transações feitas via PIX, geraram uma onda de fake news que atribuíam ao Executivo o desejo de taxar as movimentações. O discurso se espalhou, propagandeado inclusive por parlamentares. A mentira usava como base um medo real, já que, para quem tem pouco, qualquer taxa já tira muito.
Mas a afirmação não tinha base material. Em nenhum documento o governo afirmava que haveria taxação do PIX e, mesmo assim, a União recuou e publicou uma Medida Provisória para garantir que a transação não seria taxada. Percebe o mecanismo? As fake news servem para reforçar o medo e os vieses já estabelecidos.
Covid-19: pandemia, jacarés e pseudociência
No início de 2020, com a declaração de emergência sanitária global em virtude da epidemia da Covid-19, novas fake news surgiram. O “vírus chinês”, nome atribuído à doença em diversos casos de desinformação, não foi uma simples escolha de nomenclatura. Tinha um papel retórico: desumanizar o outro.
A “gripezinha” e a irreal possibilidade de “virar jacaré” ao tomar a vacina — produzida em tempo recorde — alimentavam o pânico e criavam uma outra realidade. Uma em que a pandemia não era motivo de preocupação. Ao mesmo tempo, incentivavam o discurso antivacina baseado em pseudociências.
Essa narrativa, segundo especialistas, coloca em xeque a cobertura vacinal e tem resultado no reaparecimento de doenças há muito erradicadas.
2018: o ano do “kit-gay”, “mamadeira de piroca” e os ataques à memória de Marielle Franco
O ano de 2018 foi marcado por forte polarização política e vitória eleitoral da extrema direita com a eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República. No início do ano, mais precisamente em 18 de março, a vereadora carioca Marielle Franco, eleita pelo PSOL, foi assassinada no centro do Rio de Janeiro.
Não foram poucos os exemplos de fake news que buscavam associar a trajetória política de Marielle ao crime organizado. O foco das narrativas era deslegitimar sua militância, ao mesmo tempo em que atribuía à esquerda uma atuação criminosa. O objetivo era desumanizar a memória de Marielle.
Além disso, sua bissexualidade também entrou na mira daqueles que a viam como uma ameaça à existência de uma família tradicional.
Ao mesmo tempo, a campanha eleitoral da extrema direita, tanto para cargos no Executivo quanto Legislativo, foi marcada por ataques às instituições democráticas e pelo uso generalizado de fake news para gerar caos informacional.
O “kit gay” e a “mamadeira de piroca” foram exemplos desses episódios que, buscando oferecer respostas aos medos daqueles que acreditam na ameaça iminente à “família”, jogaram no debate público afirmações sem qualquer base na realidade, mas que bastavam para confirmar crenças.
A fofoca de boteco em 1996
Em 1996, nas eleições municipais para a prefeitura do Rio de Janeiro, a disputa foi entre Luiz Paulo Conde, do extinto Partido da Frente Liberal e Sérgio Cabral Filho, à época no PSDB. Sem a possibilidade de reeleição — que só foi instituída em 1997 — o então prefeito Cesar Maia apresentava Conde como seu sucessor.
Para influenciar o resultado, Maia decidiu apoiar seu candidato: mandou espalhar 150 pessoas por botecos da cidade para que comentassem, despretensiosamente, que, caso eleito, Sergio Cabral renunciaria. Luiz Paulo Conde venceu o pleito daquele ano.
Uma história moldada por boatos: a desinformação antes da internet
Você já viu que mentiras, boatos e distorções influenciam diariamente na política brasileira. Mas se hoje o boato corre no Whatsapp, antigamente ele dependia de livros, panfletos e até do boca-a-boca — seja no quartel ou no boteco.
As estratégias de manipulação da verdade não são novidades — embora seus contornos tenham mudado com o tempo. Por isso, fica difícil determinar onde termina a sabotagem ao concorrente para vencer um pleito e onde começa o cálculo sofisticado para criar pânico e consolidar ideias autoritárias. Mas o efeito sobre a opinião pública é evidente. Abaixo, separamos algumas mentiras que marcaram a história do Brasil.
A Proclamação da República
O movimento que deu início ao período republicano brasileiro foi, na prática, um golpe de estado, encabeçado por intelectuais republicanos e militares. No entanto, embora já houvesse debate sobre a data da Proclamação, historiadores apontam que ela teria sido antecipada por uma notícia falsa.
Militares haviam espalhado um boato pelo centro do Rio de Janeiro — à época capital do Império — que, o então capitão do exército, Benjamin Constant, e o marechal Deodoro da Fonseca, seriam presos por conspirarem contra a monarquia. A notícia falsa teria impulsionado a antecipação do golpe, que ocorreu no dia 15 de novembro de 1989.
As eleições de 1922 e o documento falso contra Arthur Bernardes
Em outubro de 1921, às vésperas das eleições presidenciais de 1922, o jornal carioca Correio da Manhã divulgou cartas atribuídas a Arthur Bernardes, então chefe de governo de Minas Gerais e candidato à presidência da República.
No documento, Bernades teria criticado os militares e os chamado de “essa canalha”, além de insultar o marechal Hermes da Fonseca, ex-presidente do Brasil, cujo retorno ao executivo era desejado pelo Exército. As cartas tinham uma série de erros ortográficos e um estilo duvidoso. Mais tarde, se provaram falsas.
Mesmo assim, repercutiram muito, sobretudo na oposição, e geraram desgaste: os militares passaram a apoiar Nilo Peçanha, candidato de oposição à Bernardes. No entanto, o preferido do Exército foi derrotado, o que resultou em acusações de fraude e tentativas de impedir a posse.
A ameaça comunista de 1964
Em 1961, o então presidente da República, Jânio Quadros, renunciou. Quem assumiu foi o vice, João Goulart. O país já enfrentava uma crise política grave e a ascensão de Jango ao poder se tornou o centro de uma narrativa falsa que afirmava que o Brasil estava na iminência de uma tomada de poder por parte dos comunistas.
João Goulart, de fato, se posicionava mais à esquerda, defendia a industrialização do país e um desenvolvimento soberano, além de propor reformas de base e redistribuição de renda, mas estava longe do comunismo. A ameaça existia apenas para o interesse daqueles que, sim, articularam um golpe, tomaram o poder e mergulharam o país em uma ditadura que durou 21 anos.
As fake news não são erros. Elas fazem parte de um plano
Talvez você pense que as fake news são apenas um subproduto da internet ou da falta de regulamentação nas redes sociais. Mas essa é só a ponta do iceberg. A desinformação, como mostra a história recente do Brasil, se sofisticou e exibe uma nova face: é parte de um projeto político de longo alcance. Agora, a guerra cultural é o campo de batalha e, as crenças distorcidas, a munição.
A viralização não é aleatória, é parte do método. As fake news são criadas justamente para gerar medo, reforçar preconceitos, dividir a sociedade e minar cotidianamente a confiança nas instituições públicas. Elas se alimentam do ressentimento, confirmam crenças irreais e oferecem um inimigo para ser combatido.
Elas não são apenas mentiras — são parte de uma estratégia e servem a um projeto de poder que aposta no caos como ferramenta política.
Para entender a lógica por trás disso, convidamos você para a aula magna mais importante do ano, “A Semente do Caos”. Nela, o professor João Cezar de Castro Rocha, referência nacional nos estudos sobre guerra cultural, vai revelar quais são os planos da extrema direita para tentar mergulhar o Brasil em um regime autocrático. O encontro será transmitido ao vivo no dia 15 de junho, às 20h.
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Fonte: ICL Notícias