Por Valter Mattos da Costa*
As relações sociais nunca estiveram imunes às forças que moldam a economia. Em cada época, a estrutura produtiva impôs formas específicas de interação e controle. Hoje, as engrenagens não estão apenas nas fábricas, mas pulsando nos códigos invisíveis que operam nas telas.
O avanço tecnológico, apresentado como símbolo de liberdade, tornou-se também a ferramenta mais sofisticada de vigilância e captura. Algoritmos desenhados para manter a atenção sequestrada funcionam como esteiras de produção: processam cliques, curtidas e emoções, transformando tudo em dados vendáveis – inclusive nós, simples usuários.
Se, no passado, o trabalhador vendia sua força de trabalho no chão de fábrica, hoje, mesmo no lazer, a atenção é mercadoria. A promessa de gratuidade esconde o modelo em que o produto não é o que se consome, mas quem consome.
As ideias de Karl Marx voltam com força (o Velho Barbudo do XIX tá on), como a que diz que o capitalismo não inventou a exploração, mas transformou todas as relações humanas em relações comerciais. No presente, essas relações estão digitalizadas, indexadas e precificadas por sistemas que fingem neutralidade.
Relatos de líderes das próprias big techs revelam contradições: muitos impõem limites rigorosos ao uso de smartphones e redes por seus próprios filhos, ao mesmo tempo em que lucram com a compulsão – inclusive a de pedófilos – que essas ferramentas instalam nas famílias alheias.
O episódio recente em que o youtuber Felca expôs a adultização e a sexualização de crianças mostra a face mais obscura desse mercado. Não se trata de exceções, mas de um sistema que descobre nichos lucrativos até nos limites da ética.
A lógica é simples e brutal: conteúdos que geram engajamento são priorizados. Se a polêmica, a exposição ou o risco aumentam as visualizações, tornam-se bens valiosos. A linha entre entretenimento e exploração desaparece.
Esse mecanismo dialoga com a metáfora da “toca de coelho” (como nos devaneios de “Alice no País das Maravilhas”), popularizada para descrever como os algoritmos puxam o usuário para espirais cada vez mais profundas. Cada clique alimenta o cálculo do próximo passo.
No documentário O Dilema das Redes, essa dinâmica é dramatizada: não se trata apenas de oferecer conteúdo, mas de moldar comportamentos e opiniões. É um projeto de engenharia social com objetivo mercadológico – criando bolhas, polarização e o enfraquecimento da democracia.
“O fetichismo da mercadoria” (o fascínio que as pessoas têm pelo consumo), conceito clássico do materialismo histórico, ganha nova camada. Agora, não apenas os objetos escondem as relações de exploração, mas também as interações humanas se travestem de “conexões” para mascarar a extração de valor (os saldos destas “conexões” também são mercadorias).
O resultado é a naturalização da vigilância. Aceita-se que a vida inteira seja monitorada e arquivada, em troca de conveniência ou de um breve momento de prazer digital. A renúncia à privacidade é convertida em receita publicitária.
Essa nova fase da exploração não rompe com as formas anteriores, mas as potencializa. O trabalhador do presente não é apenas explorado no expediente: é também explorado quando consome, se diverte e se comunica.
No campo da cultura, a mercantilização atinge até a infância. A formação simbólica, a curiosidade e a inocência tornam-se insumos de uma indústria que negocia imagens, conversas e identidades para ampliar o alcance e o faturamento.
Na Revolução Industrial, crianças miseráveis eram enviadas às minas de carvão inglesas, onde muitas morriam soterradas ou adoeciam cedo; as que sobreviviam perdiam a infância na escuridão.
Hoje, a lógica é a mesma: um sistema que transforma a vulnerabilidade em lucro. Se antes o corpo infantil era explorado como força de trabalho barata, agora é mercantilizado na forma de imagens e interações digitais, alimentando tanto o apetite criminoso de pedófilos quanto os algoritmos das big techs. O modelo não mudou; apenas atualizou suas ferramentas – ou seja, é o capitalismo sendo capitalismo.
As consequências sociais são vastas: aumento da ansiedade, visões de mundo doentias, desinformação e erosão de vínculos comunitários. Os danos psicológicos e coletivos não são acidentes, mas subprodutos previsíveis do modelo.
A crítica não pode se restringir ao moralismo ou à indignação momentânea. É preciso compreender que se trata de um modo de produção que se adapta às condições tecnológicas, sem alterar seu núcleo explorador.
A pedagogia da emancipação exige que se revele essa engrenagem. Não basta denunciar casos isolados; é necessário mostrar como cada caso é apenas a superfície de um sistema coerente e eficiente.
A resistência passa pela formação crítica. Conhecer o funcionamento das plataformas, identificar os padrões de captura e desenvolver práticas coletivas de enfrentamento são passos fundamentais para não reproduzir a lógica dominante.
A história mostra que nenhuma forma de exploração se desfaz sozinha. É sempre pela ação consciente, organizada e persistente que se constrói a possibilidade de transformar as relações humanas em algo além de mercadorias.
Entre todos, especialmente nós professores, recai a tarefa de mostrar aos alunos e à sociedade que, das minas e máquinas ao algoritmo, a exploração mantém a mesma essência; pois o nome disso é capitalismo.
*Professor de História, especialista em História Moderna e Contemporânea e mestre em História Social, todos pela UFF, doutor em História Econômica pela USP e editor da Dissemelhanças Editora.
Fonte: ICL Notícias